«A inteligência do jogador de Hóquei em Patins»
Tiago Sousa
Ao ler a entrevista do Xavi Hernandez ao blog Visão de Mercado (datada de 20 de março de 2018), surge-me à memória uma frase utilizada por um ex-colega de equipa que defendia que o "jogador de hóquei não podia ser muito inteligente, pois corria o risco de pensar em demasia". Eu acredito precisamente no contrário. À medida que a velocidade do jogo aumenta, maior deve ser a inteligência do jogador. No entanto, para isso poder acontecer, é necessário transformar o treino e ensinar os jogadores a raciocinar.
Na minha opinião, o nosso ensino/treino comete um erro crasso: não ensinar a pensar. Por exemplo, as disciplinas às quais os nossos filhos têm mais dificuldade são aquelas onde são obrigados a resolver problemas ao invés de decorar matéria (ex. Matemática).
Ao ensinar a decorar estamos a criar “máquinas” que não questionam nem reagem às dificuldades. Por outro lado, dando-lhes problemas para resolver, criamos alunos/atletas capazes de se adaptarem ao meio em que estão inseridos e, acima de tudo, a resolver de forma eficiente os problemas que lhes são propostos.
Usei propositadamente a palavra eficiente por, há dias, me ter deparado com a dificuldade em distinguir eficácia de eficiência. Eficácia refere-se ao acto de efectuar a tarefa certa, completar actividades e alcançar metas, enquanto que eficiência se centra no acto de fazer as coisas de forma optimizada, mais rapidamente e com menos gastos. Muitas vezes, nós treinadores, na prossecução do treino, procuramos criar jogadores eficazes. No entanto, o que o jogo pede são jogadores eficientes, ou seja, capazes de resolver problemas de forma optimizada, rápida e com menos gastos.
Esta distinção entre eficácia e eficiência faz-me recordar o jogo do Forte contra o Trissino a contar para a jornada 25 do campeonato de Hóquei em Patins italiano. Os jogadores do Trissino fazem uma movimentação colectiva muito interessante que acaba interceptada pelo guarda-redes do Forte (Riccardo Gnata). Após a intercepção por parte do guarda-redes, o jogador do Forte (Frederico Ambrosio) recupera a bola e efectua uma transição ofensiva “costa a costa” que culmina em golo. Aquilo que o treinador do Trissino procurou foi gerar uma movimentação eficaz, mas que acabou por ser interceptada pela boa leitura do guarda-redes adversário. Muito provavelmente, passaram muito tempo a ensaiar esta movimentação no treino, sem oposição ou mesmo com oposição, mas condicionada. No entanto, o atacante do Forte foi eficiente.
Muitos de nós treinadores (incluo-me nesse lote) dizemos aos nossos atletas que a bola anda mais rápido do que nós. É verdade! No entanto, neste lance, o jogador percebeu que a melhor solução seria conduzir a bola e finalizar. Eficiente! Aqui não houve um “castramento” da acção do jogador, houve uma tomada de decisão eficiente que terminou em golo. Muito provavelmente, se o jogador tivesse optado por seguir os princípios de eficácia para a transição ofensiva preconizados pelo seu treinador (ou pela grande maioria dos treinadores) e muito provavelmente repetido no treino até à exaustão, teria efectuado um passe para o jogador mais adiantado, não contemplando o desfecho alcançado. Aqui entrou em jogo inteligência do jogador e a capacidade deste interpretar o problema que lhe estava a ser colocado naquele instante, encontrando a solução mais eficiente.
Existem estudos noutras modalidades, que não o Hóquei em Patins, que referem que apenas 10% das movimentações saem tal e qual como foram trabalhadas no treino, e que – em 60% das vezes – o que emerge são variantes dessa movimentação.
Muitos de nós já experienciámos situações no treino em que trabalhamos uma movimentação, que consideramos poder ser extremamente eficaz no dia de jogo, contra um determinado adversário, e que posteriormente se traduzem em ineficazes por diversas razões, da qual destaco a análise e conhecimento que o adversário tinha da nossa forma de jogar.
Tive alturas, em treino, em que os meus atletas clamavam não conseguirem fazer as movimentações uma vez que os colegas já sabiam o que eles queriam fazer. Esta situação, para mim, como treinador, nunca se reverteu em problema, sendo antes encarado como uma solução. Considero fundamental trabalhar em situações onde a defesa saiba o que o ataque procura. Só assim é possível criar novas soluções e desenvolver a capacidade, junto dos atletas, de leitura e percepção do jogo.
Hoje em dia, existe muita informação disponível sobre as equipas e jogadores. Se o jogador e, acima de tudo, o treinador não conseguir perceber isso, está (estarão) condenado(s) ao insucesso. Mais do que jogar em sistemas fechados, fáceis de desmontar pela defesa contrária, deverá coexistir a evolução das equipas para sistemas livres. Por outras palavras, o hóquei está a evoluir para o jogo baseado na tomada de decisão do atleta, com base nos princípios de jogo do treinador. Não podemos continuar a treinar o Y a passar para o X e ir para determinada zona do campo. Necessitamos, sim, de transmitir princípios de jogo e treinar a tomada de decisão por parte dos nossos atletas. E, para que a tomada de decisão seja cada vez melhor, precisamos de jogadores mais inteligentes e rotinados no acto de pensar o jogo.
Ao ler o artigo de opinião de Rodrigo Pais de Almeida (treinador de futsal dos Leões de Porto Salvo), onde defende que as equipas devem “ter como modelo não ter modelo, apenas princípios”, concluo que os desportos colectivos tendem a evoluir para sistemas cada vez menos fechados e, acima de tudo, cada vez menos “castradores” da criatividade e tomada de decisão dos jogadores. Como é referido no artigo “devemos ter uma ideia clara de como jogar, como começar, como organizar, mas é na percepção de realidades e de momentos, e até na rapidez de pensamentos e de entendimento das mesmas, que se faz a diferença”.
Tiago Sousa
Quarta-feira, 1 de Maio de 2019, 12h42